Eis alguns estudos publicados na página web da Santa Sé, em que os consultores do Departamento das Celebrações Litúrgicas do Santo Padre aprofundam temáticas sobre as duas formas do rito romano: órdinária e extraordinária.
DEPARTAMENTO DAS CELEBRAÇÕES LITÚRGICAS
DO SUMO PONTÍFICE
O sacerdote na celebração eucarística
O Santo Padre Bento XVI proclamou, como todos sabem, o Ano Sacerdotal (junho de 2009 – junho de 2010), com ocasião do 150° aniversário do dies natalis do Santo Cura d’Ars.
A intenção é “contribuir para promover o compromisso de renovação de todos os sacerdotes para um mais forte e incisivo testemunho evangélico no mundo de hoje” [1]. São João Maia Vianney, além de representar um modelo de sacerdote, sempre anunciou com clareza e ênfase a incomparável dignidade do sacerdócio e a centralidade do ministério ordenado no seio da Igreja. Partindo de seus ensinamentos, o Santo Padre voltou a propor as seguintes palavras do Santo: “Ó, quão grande é o sacerdote!… Se ele compreendesse, morreria… Deus o obedece: ele pronuncia duas palavras e Nosso Senhor desce do céu a sua voz e se deposita em uma pequena hóstia…”. E também: “Retirado o sacramento da Ordem, não teríamos o Senhor. Quem voltou a colocar no sacrário? O sacerdote. Quem acolheu vossa alma ao entrar na vida? Quem a nutre para dar-lhe a força de realizar sua peregrinação? O sacerdote. Quem a preparará para apresentar-se diante de Deus, lavando-a pela última vez no sangue de Jesus Cristo? O sacerdote. E se esta alma morre [pelo pecado], quem a ressuscitará, quem lhe devolverá a calma e a paz? Uma vez mais o sacerdote… Depois de Deus, o sacerdote é tudo!… Ele mesmo não poderia entender bem a não ser no céu” [2].
Como se vê, São João Maria identifica a grandeza do sacerdote com referência privilegiada ao poder que ele exerce nos sacramentos em nome e na Pessoa de Cristo. Bento XVI colocou em evidência este fato, recordando também outras palavras do Cura d’Ars, que se referem em particular ao ministério de celebrar a Santa Eucaristia. O Papa escreve que o Santo “estava convencido de que da Missa dependia todo fervor da vida de um sacerdote: a causa do relaxamento do sacerdote é que não dedica atenção à Missa! Deus meu, como há que compadecer de um sacerdote que celebra como se fizesse uma coisa ordinária!” [3].
O Ano Sacerdotal propões a nossa reflexão a figura do sacerdote e, em particular, sua dignidade de ministro ordenado que celebra os sacramentos, em benefício de toda Igreja, na Pessoa de Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote [4].
Neste Ano Sacerdotal, que se celebra entre 2009 e 2010, há também outras celebrações que vale recordar, porque estão intimamente relacionadas com a índole eucarística da dignidade sacerdotal. Em 1969, o Papa Paulo VI promulgava, com a Constituição Apostólica Missale Romanum, o novo Missal, preparado após o Concílio Vaticano II. No presente ano, 2009, portanto, celebram-se 40 anos desta promulgação. Em 2010, celebrar-se-ão outros dois aniversários, também vinculados diretamente com a celebração da Eucaristia. O primeiro coincide com o 40° aniversário (1970-2010) da promulgação da definitiva editio typica (prima) da Institutio Generalis Missalis Romani. O segundo coincide com o 440° aniversário da promulgação do Missal atualmente chamado Vetus Ordo o Usus antiquior, promulgado por São Pio V com a Constituição apostólica Quo primum,de 14 de julho de 1570. Esta Constituição é recordada, junto ao Missal de São Pio V, desde as primeiras palavras da mencionada Constituição apostólica Missale Romanum de Paulo VI [5].
Os dois Missais, unidos também pela celebração de seus respectivos aniversários, são duas formas da única lex orandida Igreja de Rito latino. A este respeito, expressou-se o Santo Padre Bento XVI, ensinando que, com relação ao Missal de Paulo VI, “o Missal Romano promulgado por São Pio V e novamente editado pelo beato João XXIII deve ser considerado como expressão extraordinária da mesma lex orandi [lei da oração] e deve ser tido em devida honra por seu uso venerável e antigo. Estas duas expressões dalex orandi da Igreja não conduzirão de modo algum a uma divisão na lex credendi [lei da fé] da Igreja; são de fato dois usos do único Rito Romano. Por isso, é lícito celebrar o sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano promulgada pelo Beato João XXIII em 1962 e nunca revogado, como forma extraordinária da Liturgia da Igreja” [6].
A possibilidade de uma serena e harmônica coexistência das duas formas do único Rito Romano foi, enfim, indiretamente afirmada também pela coexistência de ambos Ordines Missae (Beato João XXIII e Paulo VI) dentro do recente Compendium Eucharisticum, publicado pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos [7].
A coincidência destas diversas efemérides ditou também o tema que a seção Espírito da Liturgia se propõe a aprofundar este ano: o do “Sacerdote na Celebração eucarística”. Através destes breves artigos de periodicidade quinzenal, redigidos por teólogos, liturgistas e canonistas competentes, tentaremos apresentar de modo claro e acessível o papel e a tarefa do sacerdote nas diversas partes da Missa, tendo presentes ambos Missais, dos quais se celebram os aniversários. Desejo que estes artigos possam ajudar os sacerdotes a aproveitar a oportunidade de reflexão e de conversão oferecida pelo Ano Sacerdotal, e que possam estimulá-los a um cuidado cada vez mais atento do ars celebrandi. Esperemos também que as contribuições que se irão publicando pouco a pouco possam ajudar também o restante dos leitores – religiosos, religiosas, seminaristas, fiéis leigos – a reconsiderar com maior atenção e a venerar com profundo respeito religioso a grandeza do Mistério eucarístico e a dignidade do ministério sacerdotal, além de redescobrir sua centralidade na vida e na missão da Igreja.
Notas [originais em italiano]
[1] Bento XVI, Lettera di Indizione dell’Anno Sacerdotale, 16.06.2009.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] I presbiteri «esercitano al massimo grado il loro sacromunusnel culto eucaristico o sinassi, nella quale, agendo in persona di Cristo [in persona Christi] e proclamando il suo mistero, uniscono i voti dei fedeli al sacrificio del loro Capo, e nel sacrificio della Messa rappresentano ed applicano l’unico sacrificio della nuova alleanza, cioè di Cristo che si offrì al Padre una volta per sempre come Vittima immacolata, fino alla venuta del Signore»: Concilio Vaticano II, Lumen gentium, n. 28: AAS 57 (1965), p. 34. Cf. anche Presbyterorum Ordinis, nn. 2; 12; 13.
[5] Cf. Paulo VI, Missale Romanum, 03.04.1969: AAS 61 (1969), p. 217.
[6] Bento XVI, Summorum Pontificum, 07.07.2007, art. 1.
[7] Cf. Congregatio de Cultu Divino et Disciplina Sacramentorum, Compendium Eucharisticum, LEV, Città del Vaticano 2009. La preparazione di questo testo era stata affidata direttamente dal Santo Padre, che ne aveva dato notizia nella Esortazione apostolica post-sinodale Sacramentum Caritatis, 22.02.2007, n. 93.
DEPARTAMENTO DAS CELEBRAÇÕES LITÚRGICAS
DO SUMO PONTÍFICE
O sacerdote na celebração do Tríduo Pascal
A Carta aos Hebreus é o único texto do Novo Testamento que atribui ao nosso Senhor Jesus Cristo os títulos de “Sacerdote”, “Sumo Sacerdote” e “Mediador da Nova Aliança”, graças à oferenda do sacrifício do seu corpo, antecipado na Ceia mística da Quinta-Feira Santa, consumado sobre a cruz e apresentado ao Pai com a ressurreição e a ascensão ao céu (cf. Hb 9,11-15). Este texto é meditado na Liturgia das Horas da quinta semana da Quaresma – ou da Paixão, como no calendário litúrgico da forma extraordinária do Rito Romano – e na Semana Santa.
Nós, sacerdotes católicos, devemos sempre contemplar Cristo e ter os mesmos sentimentos d’Ele; esta ascese acontece com a conversão permanente. Como se realiza a conversão em nós, sacerdotes? No rito da ordenação nos é pedido o ensino da fé católica, não das nossas ideias; “celebrar com devoção dos mistérios de Cristo – isto é, a liturgia e os sacramentos – segundo a tradição da Igreja”, e não segundo o nosso gosto; sobretudo, “estar cada vez mais unidos a Cristo Sumo Sacerdote, que, como vítima pura, ofereceu-se ao Pai por nós”, isto é, conformar nossa vida segundo o mistério da Cruz.
A Santa Igreja honra o sacerdote e o sacerdote deve honrar a Igreja com a santidade da sua vida – este foi o propósito de Santo Afonso Maria de Ligório no dia da sua ordenação –, com o zelo, com o trabalho e com o decoro. Ele oferece Jesus Cristo ao Pai Eterno e por isso deve estar revestido das virtudes de Jesus Cristo, para preparar-se para o encontro com o Santo dos Santos. Que importante é a preparação interior e exterior para a sagrada liturgia, para a Santa Missa! Trata-se de glorificar o Sumo e Eterno Sacerdote, Jesus Cristo.
Pois bem, tudo isso se realiza em grau máximo na Semana Santa, a Grande e Santa Semana, como dizem os orientais. Vejamos alguns dos seus principais atos, com base no cerimonial dos bispos.
1. Com a Missa in Cena Domini, da Quinta-Feira Santa, o sacerdote entra nos principais mistérios – a instituição da Santíssima Eucaristia e do sacerdócio ministerial –, assim como do mandamento do amor fraterno, representado pelo lavatório dos pés, gesto que a liturgia copta realiza ordinariamente cada domingo. Nada melhor para expressá-lo que o canto do Ubi caritas. Após a comunhão, o sacerdote, usando o véu umeral, sobre ao altar, faz a genuflexão e, ajudado pelo diácono, segura a píxide com as mãos cobertas pelo véu umeral. É o símbolo da necessidade de mãos e corações puros para aproximar-se dos mistérios divinos e tocar o Senhor!
2. Na Sexta-Feira Santa in Passione Domini, o sacerdote é convidado a subir ao Calvário. Às três da tarde, às vezes um pouco mais tarde, acontece a celebração da Paixão do Senhor, em três momentos: a Palavra, a Cruz e a Comunhão. Dirige-se em procissão e em silêncio ao altar. Depois de ter reverenciado o altar, que representa Cristo na austera nudez do Calvário, ele se prostra em terra: é a proskýnesis, como no dia da ordenação. Assim, expressa a convicção do seu nada diante da Majestade divina, e o arrependimento por ter se atrevido a medir-se, por meio do pecado, com o Onipotente. Como o Filho que se anulou, o sacerdote reconhece seu nada e assim tem início sua mediação sacerdotal entre Deus e o povo, que culmina na oração universal solene.
Depois se faz a ostensão e a adoração da Santa Cruz: o sacerdote se dirige ao altar com os diáconos e lá, em pé, ele a recebe e a descobre em três momentos sucessivos – ou a mostra já descoberta – e convida os fiéis à adoração, em cada momento, com as palavras: Eis o lenho da cruz, do qual pendeu a salvação do mundo. Em sua descarnada solenidade, aqui, no coração do ano litúrgico, a tradição resistiu tenazmente mais que em outros momentos do ano.
O sacerdote, após ter depositado a casula, se possível descalço, aproxima-se primeiramente da Cruz, ajoelha-se diante dela e a beija. A teologia católica não teme em dar aqui à palavra “adoração” seu verdadeiro significado. A verdadeira Cruz, banhada com o sangue do Redentor, torna-se, por assim dizer, uma só coisa com Cristo e recebe a adoração. Por isso, prostrando-nos diante do lenho sagrado, nós nos dirigimos ao Senhor: “Nós vos adoramos, ó Cristo, e vos bendizemos, porque pela vossa Santa Cruz redimistes o mundo”.
3. A Páscoa do Reino de Deus se realizou em Jesus: oferecida e consumida a Ceia, “na noite em que ia ser entregue”; imolada sobre o Calvário na Sexta-Feira Santa, quando “houve escuridão sobre toda a terra”, mais uma vez à noite recebe a consagração da aprovação divina, na ressurreição de Cristo Senhor: por João, sabemos que Maria Madalena se aproximou do sepulcro “bem de madrugada”; portanto, aconteceu nas últimas horas da noite após o sábado pascal.
No Novus Ordo, o sacerdote, desde o início da Vigília, está vestido de branco, como para a Missa. Ele abençoa a fogo e acende o círio pascal com o novo fogo, se procede, após ter aplicado, como na liturgia antiga, uma cruz. Depois grava sobre o lado vertical da cruz a letra grega alfa e, abaixo, a letra omega; entre os braços da cruz, faz a incisão de quatro algarismos para indicar o ano em curso, dizendo: Cristo ontem e hoje. Depois, feita a incisão da cruz e dos demais sinais, pode aplicar no círio cinco grãos de incenso, dizendo: Por suas santas chagas. Depois, cantando o Lumen Christi, guia a procissão rumo à igreja. O sacerdote está à cabeça do povo dos fiéis aqui na terra, para poder guiá-lo ao céu.
É o sacerdote que entoa solenemente Eis a luz de Cristo!. Ele o canta três vezes, elevando gradualmente o tom da voz: o povo, depois de cada vez, repete-o no mesmo tom. Na liturgia batismal, o sacerdote, estando de pé diante da fonte, abençoa a água, cantando a oração: Ó Deus, por meio dos sinais sacramentais; enquanto invoca: Desça, Pai, sobre esta água, pode introduzir nela o círio pascal, uma ou três vezes.
O significado é profundo: o sacerdote é o órgão fecundador do seio eclesial, simbolizado pela fonte batismal. Verdadeiramente, na pessoa de Cristo Cabeça, ele gera filhos que, como pai, fortifica com o crisma e nutre com a Eucaristia. Também em razão destas funções maritais com relação à Igreja esposa, o sacerdote não pode senão ser homem. Todo o sentido místico da Páscoa se manifesta na identidade sacerdotal, chegando à plenitude, o plếroma, como diz o Oriente. Com ele, a iniciação sacramental chega ao cume e a vida cristã se torna o centro.
Portanto, o sacerdote, que subiu com Jesus à cruz na Sexta-Feira Santa e desceu ao sepulcro no Sábado Santo, no Domingo de Páscoa pode afirmar realmente com a sequência: “Sabemos que Cristo verdadeiramente ressuscitou dentre os mortos”.
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DO SUMO PONTÍFICE
A vestição dos paramentos litúrgicos e as respectivas orações
1. Breve revisão histórica
As roupas utilizadas pelos ministros sagrados nas celebrações litúrgicas são derivadas das vestimentas gregas e romanas. Nos primeiros séculos, a forma de vestir das pessoas de uma determinada classe social (os honestiores) foi também adotada para o culto cristão, e esta prática foi mantida na Igreja, mesmo após a paz de Constantino. Como contado por alguns escritores eclesiásticos, os ministros sagrados usavam suas melhores roupas, provavelmente reservadas para a ocasião [1].
Enquanto que na antiguidade cristã as vestimentas litúrgicas diferiam das de uso cotidiano não pela forma particular, mas apenas pela qualidade dos tecidos e decoração particular, no curso das invasões bárbaras, os costumes, e com eles também a forma de vestir dos novos povos, foram introduzidos no Ocidente, levando a mudanças na moda profana. A Igreja, ao contrário, manteve essencialmente inalteradas as roupas usadas pelos sacerdotes nos cultos públicos; foi assim que as vestimentas de uso cotidiano acabaram por se diferenciar das de uso litúrgico. Na época carolíngia, finalmente, os paramentos próprios de cada grau do sacramento da ordem foram definitivamente definidos, assumindo a aparência que conhecemos hoje.
2. Função e significado espiritual
Além das circunstâncias históricas, os paramentos sacros têm uma função importante nas celebrações litúrgicas: primeiramente, o fato deles não serem usados no cotidiano, tendo assim um caráter cultual, ajuda-nos a romper com o cotidiano e suas preocupações, no momento da celebração do culto divino. Além disso, as formas largas das vestimentas, como por exemplo da casula, põem em segundo plano a individualidade de quem as veste, enfatizando seu papel litúrgico. Pode-se dizer que a “ocultação” do corpo do ministro sob as vestes, em certo sentido, despersonaliza-o, removendo o ministro celebrante do centro, para revelar o verdadeiro Protagonista da ação litúrgica: Cristo. A forma das vestes, portanto, lembra-nos que a liturgia é celebrada in persona Christi, e não em próprio nome.
Aquele que exerce uma função de culto não atua como indivíduo por si mesmo, mas como ministro da Igreja e como instrumento nas mãos de Jesus Cristo. O caráter sagrado dos paramentos provém também do fato de que são vestidos conforme prescreve o Ritual Romano.
Na forma extraordinária do Rito Romano (de São Pio V), a vestidura dos paramentos litúrgicos é acompanhada por orações relativas a cada veste, orações cujo texto ainda pode ser encontrado em muitas sacristias. Ainda que estas orações não sejam mais prescritas (mas nem tampouco proibidas) da forma ordinária do Missal emitido por Paulo VI, seu uso é aconselhável, uma vez que ajudam nas preparações e no recolhimento do sacerdote antes da celebração do Sacrifício Eucarístico.
Para confirmar a utilidade destas orações, note-se que elas foram incluídas no Compendium Eucharisticum, recentemente publicado pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos [2]. Além disso, pode ser útil lembrar que Pio XII, por decreto de 14 de janeiro de 1940, concedeu uma indulgência de cem dias para cada oração.
3. As vestimentas litúrgicas individuais e as orações que acompanham sua vestidura
1) No início da preparação, o sacerdote lava as mãos, recitando uma oração especial; além da questão de higiene, este ato tem também um significado simbólico profundo, representando a passagem do profano ao sagrado, do mundo do pecado para o puro Santuário do Altíssimo. Lavar as mãos equivale, de certa forma, a retirar as sandálias diante da sarça ardente (Êxodo 3:5). A oração se refere a esta dimensão espiritual:
Da, Domine, virtutem manibus meis ad abstergendam omnem maculam; ut sine pollutione mentis et corporis valeam tibi servire.
(Dai às minhas mãos, Senhor, o poder de apagar toda mácula: para que eu vos possa servir sem mácula do corpo e da alma) – (Da’, o Signore, alle mie mani la virtù che ne cancelli ogni macchia: perché io ti possa servire senza macchia dell’anima e del corpo) [3].
À lavagem das mãos se segue a vestidura propriamente dita.
2) Inicia-se com o amito, um pano retangular de linho dotado de duas fitas, que repousa sobre os ombros junto ao pescoço. O amito destina-se a cobrir, ao redor do pescoço, a vestimenta utilizada diariamente, ainda que se trate do hábito do sacerdote. Nesse sentido, é preciso lembrar que o amito também é usado quando se está vestido com roupas de estilo moderno, que muitas vezes não apresentam uma grande abertura em torno do pescoço. De qualquer forma, portanto, as roupas comuns permanecem visíveis e por isso é preciso cobri-las também, nestes casos, com o amito [4].
No Rito Romano, o amito é vestido antes da alva (túnica). Ao vesti-lo, o sacerdote recita a seguinte oração:
Impone, Domine, capiti meo galeam salutis, ad expugnandos diabolicos incursus.
(Colocai, Senhor, na minha cabeça o elmo da salvação para que possa repelir os golpes de Satanás) – (Imponi, Signore, sul mio capo l’elmo della salvezza, per sconfiggere gli assalti diabolici).
Com referência à carta de São Paulo aos Efésios 6.17, o amito é interpretado como “o elmo da salvação”, que deve proteger o portador das tentações do demônio, em especial de pensamentos e desejos malévolos durante a celebração litúrgica. Este simbolismo é ainda mais evidente no costume seguido desde a Idade Média pelos monges beneditinos, franciscanos e dominicanos, entre os quais o amito era posicionado sobre a cabeça e deixado recair sobre a casula ou a dalmática.
3) A alva consiste na veste longa e branca utilizada por todos os ministros sagrados, e que representa a nova veste imaculada que todo cristão recebe mediante o batismo. A alva é portanto um símbolo da graça santificante recebida no primeiro sacramento, e é considerada também um símbolo da pureza de coração necessária para o ingresso na graça eterna da contemplação de Deus no céu (cf. Mateus 5:8). Isso é expresso na oração recitada pelo sacerdote enquanto veste a peça, oração que se refere ao Apocalipse 7,14:
Dealba me, Domine, et munda cor meum; ut, in sanguine Agni dealbatus, gaudiis perfruar sempiternis.
(Revesti-me, Senhor, com a túnica de pureza, e limpai o meu coração, para que, banhado no Sangue do Cordeiro, mereça gozar das alegrias eternas) – (Purificami, Signore, e monda il mio cuore, perché purificato nel Sangue dell’Agnello, io goda degli eterni gaudi).
4) Sobre as vestes, na altura da cintura, é colocado o cíngulo, um cordão de lã ou outro material apropriado, que é usado como cinto.
Todos os oficiantes que portam a alva devem também portar o cíngulo (esta prática tradicional é hoje frequentemente ignorada) [5].
Para diáconos, sacerdotes e bispos, o cíngulo pode ser de cores diferentes, de acordo com o tempo litúrgico ou a memória do dia. No simbolismo das vestes litúrgicas, o cíngulo representa a virtude do auto-controle, que São Paulo enumera entre os frutos do Espírito (cf. Gálatas 5:22). A oração correspondente, como na Primeira Carta de Pedro 1,13, diz:
Praecinge me, Domine, cingulo puritatis, et exstingue in lumbis meis humorem libidinis; ut maneat in me virtus continentiae et castitatis.
(Cingi-me, Senhor, com o cíngulo da pureza, e extingui nos meus rins o fogo da paixão, para que resida em mim a virtude da continência e da castidade) – (Cingimi, Signore, con il cingolo della purezza e prosciuga nel mio corpo la linfa della dissolutezza, affinché rimanga in me la virtù della continenza e della castità).
5) O manípulo é um paramento litúrgico usado nas celebrações da Santa Missa segundo a forma extraordinária do Rito Romano; caiu em desuso nos anos da reforma litúrgica, embora não tenha sido abolido. É semelhante à estola, mas de menor comprimento, inferior a um metro, e é fixado por meio de presilhas ou fitas como as da casula. Durante a Santa Missa em sua forma extraordinária, o celebrante, o diácono e subdiácono o portam sobre o antebraço esquerdo. É possível que este paramento derive de um lenço (mappula) utilizado pelos romanos amarrado ao braço esquerdo. Uma vez que era utilizado para enxugar as lágrimas e o suor da face, escritores eclesiásticos medievais atribuíram ao manípulo um simbolismo associado às fadigas do sacerdócio. Esta leitura também está presente na oração de sua vestidura:
Merear, Domine, portare manipulum fletus et doloris; ut cum exsultatione recipiam mercedem laboris.
(Fazei, Senhor, que mereça trazer o manípulo do pranto e da dor, para que receba com alegria a recompensa do meu trabalho) – (O Signore, che io meriti di portare il manipolo del pianto e del dolore, affinché riceva con gioia il compenso del mio lavoro).
Como se vê, no início da oração mencionam-se as lágrimas e a dor que acompanham o ministério sacerdotal, mas a segunda parte do texto refere-se aos frutos do próprio trabalho. Não será fora de propósito recordar a passagem de um salmo que pode ter inspirado esta segunda simbologia referente ao manípulo, visto que a Vulgata assim apresentava o Salmo 125,5-6: ” Qui seminant in lacrimis inexultatione metent; euntes ibant et flebant portantes semina sua, venientes autem venient inexultatione portantes manipulos suos” (grifo nosso).
6) A estola é o elemento distintivo de um ministro ordenado e é sempre usada na celebração dos sacramentos e sacramentais. É uma faixa de tecido, em geral bordado, cuja cor varia de acordo com o tempo litúrgico ou o dia santo. Ao vesti-la, o sacerdote recita a seguinte oração:
Redde mihi, Domine, stolam immortalitatis, quam perdidi in praevaricatione primi parentis; et, quamvis indignus accedo ad tuum sacrum mysterium, merear tamen gaudium sempiternum.
(Restitui-me, Senhor, a estola da imortalidade, que perdi na prevaricação do primeiro pai, e, ainda que não seja digno de me abeirar dos Vossos sagrados mistérios, fazei que mereça alcançar as alegrias eternas) – (Restituiscimi, o Signore, la stola dell’immortalità, che persi a causa del peccato del primo padre; e per quanto accedo indegno al tuo sacro mistero, che io raggiunga ugualmente la gioia senza fine).
Dado que a estola é um paramento de suma importância, indicando mais do que qualquer outro a condição de ministro ordenado, não se pode deixar de lamentar o abuso, já largamente difundido, por parte de alguns sacerdotes, que não a usam em conjunto com a casula [6].
7) Finalmente, veste-se a casula ou planeta, a vestimenta característica daqueles que celebram a Santa Missa. Os livros litúrgicos usavam as duas palavras, em latim casula e planeta, como sinônimos. Enquanto o nome planeta foi usado em particular em Roma e acabou por permanecer na Itália, o nome casula deriva da forma típica da vestimenta, que originalmente circundava todo o corpo do ministro sagrado que a portava. O uso da palavra “casula” também é encontrado em outros idiomas: “Casulla”, em espanhol, “Chasuble” em francês e em Inglês, “Kasel” em alemão. Oração para vestidura da casula remete ao convite de Colossenses 3:14: “Sobretudo, revesti-vos do amor, que une a todos na perfeição”. E, de fato, a oração com a qual se veste a casula cita as palavras do Senhor contidas em Mateus 11,30:
Domine, qui dixisti: Iugum meum suave est, et onus meum leve: fac, ut istud portare sic valeam, quod consequar tuam gratiam. Amen.
(Senhor, que dissestes: O meu jugo é suave e o meu peso é leve, fazei que o suporte de maneira a alcançar a Vossa graça. Amém) – (O Signore, che hai detto: Il mio gioco è soave e il mio carico è leggero: fa’ che io possa portare questo [indumento sacerdotale] in modo da conseguire la tua grazia. Amen).
Em conclusão, espera-se que a redescoberta do simbolismo associado aos paramentos e suas orações incentive os sacerdotes a retomar a prática da oração durante a vestição, de modo a se preparar com o devido recolhimento à celebração litúrgica. Se é verdade que é possível rezar com diferentes orações, ou ainda simplesmente elevando a mente a Deus, por outro lado, os textos da oração de vestição trazem a brevidade, a precisão de linguagem, a inspiração da espiritualidade bíblica e o fato de que são rezados pelos séculos por um número incontável de ministros sagrados. Estas orações são recomendadas ainda hoje, para a preparação da celebração litúrgica, e também realizadas de acordo com a forma ordinária do Rito Romano.
Notas [originais em italiano]
[1] Cf. ad esempio san Girolamo, Adversus Pelagianos, I, 30.
[2] Edito dalla LEV, Città del Vaticano 2009, pp. 385-386.
[3] Riprendiamo il testo delle preghiere dall’edizione del Missale Romanum emanato nel 1962 dal beato Giovanni XXIII, Roman Catholics Books, Harrison (NY) 1996, p. lx. La traduzione in italiano delle preghiere è nostra.
[4] La Institutio Generalis Missalis Romani (2008) al n. 336 permette di non assumere l’amitto quando il camice è confezionato in maniera tale da coprire completamente il collo, nascondendo la vista dell’abito comune. Di fatto, però, avviene di rado che l’abito non sia visibile, anche solo parzialmente; di qui la raccomandazione ad utilizzare comunque l’amitto.
[5] Lo stesso n. 336 della Institutio del 2008 prevede la possibilità di omettere il cingolo, se il camice è confezionato in maniera tale da aderire al corpo senza di esso. Nonostante questa concessione, bisogna riconoscere: a) il valore tradizionale e simbolico dell’uso del cingolo; b) il fatto che difficilmente il camice – sia in foggia più tradizionale, che soprattutto nei tagli più moderni – aderisce da sé al corpo. Se la norma prevede la possibilità, essa dovrebbe però restare piuttosto ipotetica in via di fatto: in concreto, il cingolo risulta sempre necessario. A volte si trovano oggi dei camici che hanno il cingolo incorporato: una fettuccia di stoffa unita al camice per mezzo di una cucitura all’altezza della vita e che si annoda al momento della vestizione: in questi casi la preghiera sul cingolo può essere recitata mentre si annoda. Resta però di gran lunga preferibile la forma tradizionale.
[6] «Il Sacerdote che porta la casula secondo le rubriche non tralasci di indossare la stola. Tutti gli Ordinari provvedano che ogni uso contrario sia eliminato»: Congregazione per il Culto Divino e la Disciplina dei Sacramenti, Redemptionis Sacramentum, 25 marzo 2004, n. 123.
DEPARTAMENTO DAS CELEBRAÇÕES LITÚRGICAS
DO SUMO PONTÍFICE
As orações apologéticas na Missa
Um silêncio que contempla e adora
A Sagrada Liturgia, que o Concílio Vaticano II qualifica como a ação sacerdotal de Cristo e, portanto, fonte e cume da vida eclesial, não pode ser reduzida jamais a uma mera realidade estética, nem pode ser considerada como um instrumento com fins meramente pedagógicos ou ecumênicos. A celebração dos santos mistérios é, sobretudo, ação de louvor à soberana majestade de Deus, Uno e Trino, e expressão querida pelo próprio Deus. Com ela, o homem, pessoal e comunitariamente, apresenta-se diante d’Ele para agradecer, consciente de que seu próprio ser não pode alcançar sua plenitude sem louvá-lo e cumprir sua vontade, na constante busca do Reino que já está presente, mas que virá definitivamente no dia da parusia do Senhor Jesus [1].
A partir desta perspectiva, está claro que a direção de toda ação litúrgica – que é a mesma tanto para o sacerdote como para os fiéis – se dirige ao Senhor: ao Pai, através de Cristo, no Espírito Santo. Por isso, “sacerdote e povo certamente não rezam um ao outro, mas ao único Senhor” [2]. Trata-se de viver constantemente conversi ad Dominum, orientados ao Senhor, que implica na conversio, isto é, dirigir nossa alma a Jesus Cristo e, dessa forma, ao Deus vivente, à luz verdadeira [3].
Desse modo, a celebração litúrgica é um ato da virtude da religião que, coerentemente com sua natureza, deve se caracterizar por um profundo senso do sagrado. Nela, o homem e a comunidade devem ser conscientes de que vivem um encontro, em particular, diante d’Aquele que é três vezes Santo e Transcendente. Daí que “um sinal convincente da eficácia que a catequese eucarística tem nos fiéis seja sem dúvida o crescimento neles do senso do mistério de Deus presente entre nós” [4].
A atitude apropriada na celebração litúrgica não pode ser outra a não ser uma atitude impregnada de reverência e senso de estupor, que brota do saber-se na presença da majestade de Deus. Não era isso, por acaso, o que Deus queria expressar quando ordenou a Moisés que tirasse as sandálias diante da sarça ardente? Não nascia desta consciência, por acaso, a atitude de Moisés e de Elias, que não ousaram olhar para Deus face a face? [5]
Neste contexto, entendem-se melhor as palavras do Cânon II da Santa Missa, que definem perfeitamente a essência do ministério sacerdotal: astare coram te et tibi ministrare. Assim, pois, são duas as tarefas que definem a essência do ministério sacerdotal: “estar na presença do Senhor” e “servir em tua presença”. O Santo Padre Bento XVI, comentando esta segunda tarefa, apontava que o termo “serviço” é adotado fundamentalmente para referir-se ao serviço litúrgico. Este implica em muitas dimensões e, entre outras, indicava a proximidade, a familiaridade. Concretamente, comentava: “Ninguém está tão perto do seu senhor como o servidor que tem acesso à dimensão mais privada da sua vida. Neste sentido, ‘servir’ significa proximidade, requer familiaridade. Esta familiaridade compreende também um perigo: o de que o sagrado com que temos contato contínuo se converta para nós em costume. Assim se apaga o temor reverencial. Condicionados por todos os costumes, já não percebemos a grande, nova e surpreendente realidade: Ele mesmo está presente, fala-nos e se entrega a nós. Contra esse acostumar-se à realidade extraordinária, contra a indiferença do coração devemos lutar sem tréguas, reconhecendo sempre nossa insuficiência e a graça que envolve o fato de que Ele se entrega assim em nossas mãos” [6].
Frente a toda celebração litúrgica, mas de forma especial na Eucaristia – memorial da morte e ressurreição do seu Senhor, pelo qual se faz realmente presente este acontecimento central de salvação e se realiza a obra da nossa redenção – temos de colocar-nos em adoração diante deste mistério: mistério grande, mistério de misericórdia. O que mais Jesus poderia fazer por nós? Verdadeiramente, na Eucaristia Ele nos mostra um amor que chega “até o extremo” (Jo 13, 1), um amor que não conhece medida [7]. Diante desta realidade extraordinária, permanecemos atônitos e aturdidos: com quanta condescendência humilde Deus quis se unir ao homem! Se dentro de poucas semanas nos comoveremos diante do presépio, contemplando a encarnação do Verbo, o que podemos sentir diante do altar, onde Cristo faz presente no tempo seu sacrifício mediante as pobres mãos do sacerdote? Cabe somente ajoelhar-se e adorar em silêncio este grande mistério de fé [8].
Consequência lógica do que foi dito é que o Povo de Deus precisa ver, nos sacerdotes e nos diáconos, um comportamento repleto de reverência e de dignidade, que seja capaz de ajudá-lo a aprofundar nas coisas invisíveis, inclusive sem muitas palavras e explicações. No Missal Romano, denominado de São Pio V, assim como em diversas liturgias orientais, encontram-se orações belíssimas, com as quais o sacerdote expressa o mais profundo sentimento de humildade e de reverência diante dos santos mistérios: revelam a própria substância de qualquer liturgia [9]. Estas orações presentes no Missal Romano, que em sua edição de 1962 é o missal próprio da forma extraordinária, foram recolhidas em parte no Missal Romano promulgado depois do Concílio Vaticano II e se denominam tradicionalmente “apologias”.
A estas orações se refere a Institutio Generalis Missalis Romani (Instituição Geral do Missal Romano) em seu número 33. Depois de referir-se às orações que o sacerdote, como celebrante, pronuncia em nome da Igreja, afirma que outras vezes, quando reza, “o faz somente em seu nome,para poder cumprir seu ministério com maior atenção e piedade. Assim, as orações propostas antes da leitura do Evangelho, na preparação dos dons, assim como antes e depois da Comunhão, são ditas em segredo”.
Dessa maneira, estas breves fórmulas rezadas em silêncio convidam o sacerdote a personalizar sua tarefa, a entregar-se ao Senhor, também com seu próprio eu. E são, ao mesmo tempo, uma forma excelente de encaminhar-se com os demais ao encontro do Senhor, de maneira inteiramente pessoal, mas ao mesmo tempo junto com os outros. Este é um primeiro aspecto essencial, pois só na medida em que se interioriza e se compreende a estrutura litúrgica e as palavras da liturgia, é possível entrar em consonância interior com ela. Quando isso acontece, o sacerdote celebrante já não somente fala com Deus como uma pessoa individual, mas entra no “nós” da Igreja que ora.
Se acelebraçãoé oração e colóquio com Deus, de Deus conosco e nosso com Deus, transforma-se o próprio “eu” do celebrante, que entra no “nós” da Igreja. Enriquece-se e se amplia o “eu”, orando com a Igreja, com suas palavras, e se estabelece realmente um colóquio com Deus. Assim, celebrar é realmente celebrar “com” a Igreja: o coração se engrandece e está “com” a Igreja em colóquio com Deus. Neste processo, as orações apologéticas e o silêncio contemplativo e adorante que produzem são um elemento essencial; por isso, fazem parte da estrutura da Celebração Eucarística há mais de mil anos.
Em segundo lugar, no caminho rumo ao Senhor, percebemos a nossa própria indignidade. Torna-se necessário pedir ao longo da celebração que o próprio Deus nos transforme e aceite que participemos desta ação de Deus que configura a liturgia. De fato, o espírito de conversão contínua é uma das condições pessoais que torna possível a actuosa participatio dos fiéis e do próprio sacerdote celebrante. “Não se pode esperar uma participação ativa na liturgia eucarística quando se assiste a ela superficialmente, sem antes examinar a própria vida” [10].
O recolhimento e o silêncio antes e durante a celebração se situam neste contexto e facilitam que seja realidade a premissa “um coração reconciliado com Deus permite a verdadeira participação” [11]. Daí que seja claro que as orações apologéticas desempenham um papel importante na celebração.
Por exemplo, as orações apologéticas Munda cor meum, recitada antes da proclamação do Evangelho, ou In spiritu humilitatis, prévia ao lavabo depois da apresentação das oferendas, permitem ao sacerdote que as reza tomar consciência da realidade da sua indignidade e, ao mesmo tempo, da grandeza da sua missão. “O sacerdote é servidor e tem de esforçar-se continuamente por se sinal que, como dócil instrumento em suas mãos, refere-se a Cristo” [12]. O silêncio e os gestos de piedade e recolhimento do celebrante também movem os fiéis que participam da celebração a perceberem a necessidade de preparar-se, de converter-se, dada a importância do momento em que se encontram na celebração: antes da leitura do Evangelho, no início iminente da oração Eucarística.
Por outro lado, as apologias Per huius aquae et vini durante o Ofertório ou Quod ore sumpsimus Domine durante a purificação dos vasos sagrados, enquadram-se perfeitamente neste desejo de ser introduzidos e transformados em e pela ação divina. Uma e outra vez, temos de trazer à nossa mente e coração que a liturgia eucarística é ação de Deus que nos une a Jesus através do seu Espírito [13]. Estas duas apologias, às quais nos referimos, encaminham nossa existência rumo à Encarnação e à Ressurreição. E, na verdade, constituem um elemento que favorece a realização desse desejo da Igreja: que os fiéis não fiquem assistindo ao mistério de fé como estranhos e mudos expectadores, mas que agradeçam a Deus e aprendam a oferecer-se a Cristo [14].
Não nos parece atrevido afirmar que as apologias também desempenham um papel de primeira linha na hora de “recordar” o ministro ordenado que ele “desempenha o papel do próprio Sacerdote, Cristo Jesus. Se é assimilado ao Sumo Sacerdote, pela consagração sacerdotal recebida, então goza da faculdade de agir pelo poder do próprio Cristo, a quem representa (virtute ac persona ipsius Christi)” [15].
Ao mesmo tempo, estas orações recordam ao sacerdote que, por ser ministro ordenado, é “o vínculo sacramental que une a ação litúrgica ao que disseram e realizaram os apóstolos e, por eles, o que disse e realizou Cristo, fonte e fundamento dos sacramentos” [16]. As orações ditas pelo celebrante em segredo constituem, por isso, um meio extraordinário para unir uns aos outros, formar uma comunidade que é “liturga” e que participa inteira orientada a Deus por Jesus Cristo.
Uma das apologias, conservada no atual Ordo Missae,plasma perfeitamente o que estamos dizendo: Domine Iesu Christe Fili Dei vivi qui ex voluntate Patris cooperante Spiritu Sancto per mortem tuam mundum vivificasti (“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, que, por vontade do Pai, cooperando com o Espírito Santo, com a vossa morte destes a vida ao mundo”). De fato, as orações que o sacerdote reza em segredo – e esta concretamente – podem ajudar de modo eficaz – a sacerdotes e fiéis – a alcançar a clara consciência de que a liturgia é obra da Santíssima Trindade. “A oração e a oferenda da Igreja são inseparáveis da oração e da oferenda de Cristo, sua Cabeça. Trata-se sempre do culto de Cristo em e pela sua Igreja” [17].
Assim, pois, as apologias, há mais de mil anos, configuram-se como simples fórmulas acrisoladas pela história, repletas de conteúdo teológico, que permitem ao sacerdote quando as reza, e ao povo fiel que participa vivendo o silêncio, perceber o mistério de fé do qual participam e assim unir-se a Cristo e reconhecê-lo como Deus, irmão e amigo.
Por estes motivos, temos de alegrar-nos pelo fato de que, apesar da reforma litúrgica pós-conciliar ter reduzido drasticamente seu número e retocado notavelmente o texto destas orações, elas continuam estando presentes também no Ordinário da Missa mais recente. É um convite aos sacerdotes a não descuidarem destas orações durante a celebração, assim como a não transformá-las de orações do sacerdote a orações de toda a assembleia, lendo-as em voz alta como as demais orações. As orações apologéticas se baseiam e expressam uma teologia diferente e complementar à que constitui o pano de fundo das demais orações. Esta teologia se manifesta na maneira silenciosa e reverente com que são rezadas pelo sacerdote e acompanhadas pelos demais fiéis.
Notas
[1] João Paulo II, Mensagem à Assembleia Plenária da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (21.IX.2001)
[2] J. Ratzinger, Prefácio ao primeiro volume dos meus escritos.
[3] Cf. Bento XVI, Homilia na Vigília Pascal, 22.III.2008.
[4] Bento XVI, Ex. apost. post.Sacramentum caritatis, n. 65.
[5] Cf. João Paulo II, Mensagem à Assembleia Plenária da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (21.IX.2001)
[6] Bento XVI, Homilia Missa Crismal, 20.III.2008.
[7] João Paulo II, .Carta enc.Ecclesia de Eucharistia, 11.
[8] João Paulo II,Carta aos sacerdotes na Quinta-Feira Santa 2004.
[9] Cf. João Paulo II, Mensagem à Assembleia Plenária da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (21.IX.2001)
[10] Bento XVI, Ex. apost. post.Sacramentum caritatis, n. 55.
[11] Idem.
[12] Bento XVI, Ex. apost. post.Sacramentum caritatis, n 23.
[13] Cf. Bento XVI, Ex. apost. post.Sacramentum caritatis, n. 37.
[14] Cf. Const.Sacrosanctum Concilium, 48.
[15] Pio XII, Carta encíclica Mediator Dei cit. no Catecismo da Igreja Católica, 1548.
[16] Catecismo da Igreja Católica, 1120.
[17] Catecismo da Igreja Católica, 1553.